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O fiddle na Música Tradicional Irlandesa

Date post: 24-Apr-2023
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O fiddle na Música Tradicional Irlandesa The fiddle in Irish Traditional Music Autores: ALOÍSIO LEONI SCHMID Departamento de Arquitetura e Urbanismo – UFPR, email: [email protected] LEANDRO HENRIQUE MERINO MOMBACH Curso Superior de Tecnologia em Luteria – UFPR, email: [email protected] RESUMO O fiddle irlandês, como instrumento mu- sical, é o próprio violino, qual inventado no Norte da Itália no séc. XVI, e populari- zado, tendo sido introduzido na Irlanda para tocar prioritariamente músicas de dança nos ritmos da moda do séc. XVII. O fiddle recebe hoje uma montagem distin- ta do violino, que pode repercutir em di- ferenças de ajuste, acessórios e mesmo no projeto do instrumento. Mas a princi- pal diferença é quanto ao modo de uso, que segue uma tradição oral, com opções estilísticas distintas do violino erudito; um caráter musical em que, além de me- lódico, é rítmico e por vezes, harmônico; e a finalidade mais de confraternização com dança e contação de histórias, do que exposição do conteúdo musical. A Música Tradicional Irlandesa recebeu adaptações ao longo dos séculos, como os próprios instrumentos, e é hoje popu- lar em muitos países. Palavras-chave: fiddle; violino; Música Tradicional Irlandesa ABSTRACT The Irish fiddle as a musical in- strument is the violin itself, as it was in- vented in Northern Italy in the 16th cen- tury and disseminated, being introduced in Ireland as an instrument supporting dance music in the fashionable rhythms of the 17th century. Nowadays, the fiddle is assemble differently from the violin, which may reflect on the set up, accessories and even the instrument design. However, the main difference concerns the way the in- strument is used which follows an oral tradition, with stylish options that differ from those of the violin; the musical char- acter, which is melodic and also rhythmic, and sometimes harmonic; and the purpose that is rather of celebration with dance and storytelling than the exposition of a musical content. The Irish Traditional Mu- sic has been changing throughout the cen- turies, as well as its instruments, and it is popular, nowadays, in many countries. Keywords: fiddle; violin; Irish Tradition- al Music
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O fiddle na Música Tradicional Irlandesa The fiddle in Irish Traditional Music

Autores: ALOÍSIO LEONI SCHMID

Departamento de Arquitetura e Urbanismo – UFPR, email: [email protected]

LEANDRO HENRIQUE MERINO MOMBACH

Curso Superior de Tecnologia em Luteria – UFPR, email: [email protected]

RESUMO

O fiddle irlandês, como instrumento mu-sical, é o próprio violino, qual inventado no Norte da Itália no séc. XVI, e populari-zado, tendo sido introduzido na Irlanda para tocar prioritariamente músicas de dança nos ritmos da moda do séc. XVII. O fiddle recebe hoje uma montagem distin-ta do violino, que pode repercutir em di-ferenças de ajuste, acessórios e mesmo no projeto do instrumento. Mas a princi-pal diferença é quanto ao modo de uso, que segue uma tradição oral, com opções estilísticas distintas do violino erudito; um caráter musical em que, além de me-lódico, é rítmico e por vezes, harmônico; e a finalidade mais de confraternização com dança e contação de histórias, do que exposição do conteúdo musical. A Música Tradicional Irlandesa recebeu adaptações ao longo dos séculos, como os próprios instrumentos, e é hoje popu-lar em muitos países. Palavras-chave: fiddle; violino; Música Tradicional Irlandesa

ABSTRACT

The Irish fiddle as a musical in-strument is the violin itself, as it was in-vented in Northern Italy in the 16th cen-tury and disseminated, being introduced in Ireland as an instrument supporting dance music in the fashionable rhythms of the 17th century. Nowadays, the fiddle is assemble differently from the violin, which may reflect on the set up, accessories and even the instrument design. However, the main difference concerns the way the in-strument is used which follows an oral tradition, with stylish options that differ from those of the violin; the musical char-acter, which is melodic and also rhythmic, and sometimes harmonic; and the purpose that is rather of celebration with dance and storytelling than the exposition of a musical content. The Irish Traditional Mu-sic has been changing throughout the cen-turies, as well as its instruments, and it is popular, nowadays, in many countries. Keywords: fiddle; violin; Irish Tradition-al Music

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1. INTRODUÇÃO

Se a Música Tradicional Irlandesa tivesse de ser reduzida a um único instrumento,

não seria a gaita de foles (uileann pipe), cara e pouco versátil, nem o apito de estanho (tin

whistle), acessível, mas estridente. Seria o fiddle. Com a forte disseminação da música ir-

landesa pelo mundo, a partir dos anos 90, o fiddle acaba sendo um instrumento musical

muito popular. Surge a questão inicial, portanto: estamos falando ou não de violino? Outras

questões, ainda: como se relacionam o violino erudito e o fiddle irlandês? Quais são as fon-

tes mais apropriadas para entender o fiddle no contexto da Música Tradicional Irlandesa?

Como se evita que o apelo comercial descaracterize a tradição?

O objetivo geral desta pesquisa é explorar a delimitação de fiddle no contexto da

Música Tradicional Irlandesa. Tal contexto é representado na fotografia "An Irish Fiddler",

atribuída a W.A.Green, sem data, reproduzida na Figura 1. A análise se dá a partir de uma

perspectiva do violino erudito - inevitável por ser um dos autores luthier, e o outro, violi-

nista amador. Objetivos específicos são o de empreender uma exploração bibliográfica de

artigos de orientação musicológica, assim como percorrer de modo não sistemático notas

em métodos de Música Tradicional Irlandesa que situem o fiddle e, por fim, analisar de mo-

do não sistemático gravações sonoras e em vídeo de alguns intérpretes de fiddle. Trabalho

exploratório, esta pesquisa principia sem uma hipótese.

Figura 1 - Um fiddler irlandês. W.A.Green (data desconhecida). Acesso em maio de 2021. Disponível em https://www.nmni.com/collections/history/photographs/green-collection/hoyfmwag1192. ©National Museums NI

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2. FIDDLE OU O VIOLINO?

A literatura mostra ser tamanha a variação do que se chama fiddle que parece tare-

fa mais fácil delimitar violino. Este último tem uma definição que é quase canônica: numa

orquestra profissional, não seria provável que um violinista comparecesse portando um

instrumento de cinco cordas, tingido na cor azul ou mesmo construído com espécies de

madeira outras que abeto e maple. Já fiddle é um conceito de contornos flexíveis. Ainda as-

sim, procuraremos delimitá-lo e em duas etapas: primeiro, com um esclarecimento da ori-

gem e evolução do termo; depois, com uma análise pragmática do que, hoje, se chama fiddle

no contexto da música irlandesa.

O termo fiedel é medieval, e discute-se qual seria a referência mais antiga. Uma de-

las está no baixo-relevo de marfim numa capa de livro do séc. VIII, exposta no museu do

Louvre; outra aparece no Livro dos Salmos de Utrecht (860) e também como referência li-

terária em Evangelienharmonie V por Otfried von Weissenburg (BROCKHAUS-RIEMANN,

1990).

Segundo Polk (1989), os termos vedel e geige aparecem em documentos dos sécu-

los XV e XVI, porém descrevendo instrumentos muito diferentes. O termo geige parece ter

mudado de significado ao longo do séc. XV. O autor menciona em documento de 1376, em

Duisburg, o termo Meyster Wilhalm dem vedeler (Mestre Wilhalm, o violinista), embora

também trouxesse o termo latino citharist em alusão ao mesmo músico. O termo fyddelern

é mencionado em Frankfurt, em 1368, fiddler em Nuremberg, em 1392, e fiddlers em Aa-

chen, 1383. Na Alemanha, por volta de 1400, registrava-se como instrumentos de corda

friccionado o fidle, o rebec e a "viola medieval". O primeiro seria o instrumento com carac-

terísticas variáveis, das quais as mais usuais eram "fundo plano e/ou clara distinção entre

corpo e braço". A rebec tinha fundo abaulado e a "viola medieval" era um grande fiddle

acinturado, e desapareceu ao longo do séc. XIV. O termo germânico vedel era o mais comum

até cerca de 1430. Depois ascendeu geige, mais identificado com a rebec. Em algum lugar e

momento, ainda aparecem os termos vitula e fitherel.

Em meados do séc. XVII, afirmou-se o significado violino - o instrumento mais pos-

sante -, mas permaneceu o significante fiddle. Usa-se hoje o termo fiddle para evocar espe-

cificamente o violino qual usado nos estilos musicais country, bluegrass e folk. Paralela-

mente, é fiddle tudo que se toque com com arco - tanto os violinos de cinco cordas, como os

goge de uma corda da África sub-sahariana ou o sarangi indiano (GROVE, 2021), ou o ershu

chinês. Coloquial ou carinhosamente, no idioma inglês as pessoas dizem fiddle de seu violi-

no e, em alemão, fiedel. Com mesma função, em português, usa-se o termo rabeca, um mo-

do mais direto de se referir ao violino, e antes, um termo histórico (BERGMANN FILHO

2016; 2021).

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A Figura 2 (fontes no Quadro 1 do Apêndice) é um registro iconográfico do fiddle e

similares nos séculos XVI a XIX na Europa e América do Norte. Mostra um instrumento to-

cado no braço, sustentado pela mão esquerda, e sem ser preso pelo queixo.

Figura 2 - uma iconografia da postura ao tocar fiddle e assemelhados do séc. XVI ao séc. XIX. Fontes no Quadro 1.

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Tomemos agora o fiddle no contexto atual da Música Tradicional Irlandesa.

Uma primeira diferença em relação ao violino é a preferência por cordas de núcleo

de aço. O critério para escolha de cordas num instrumento assim pode ser o preço, em ge-

ral bem inferior às cordas de tripa ou perlon. Outro é por ser tocado em ambientes mais ru-

idosos que as salas de concertos dos violinos eruditos.

Há menos exigência de um timbre equilibrado e cheio. Para o fiddle, há acesso faci-

litado, sem constrangimento, a um microfone ou captador, caso faltem condições acústicas

adequada como em bares. Com isto, ainda, o fiddler sozinho conta com a possibilidade de

efeitos como reverb (o amplificador emula o efeito de um ambiente mais reverberante, útil

em apresentação ao ar livre) ou chorus (o amplificador emula a sensação de mais músicos

em uníssono).

Segunda diferença: o violinista prefere a curvatura do cavalete mais arcada e um

fiddler, uma mais plana (BERTHOUD 2002, e PERLMAN, 2021). Isto se deve ao fato da ten-

são da corda de aço ser bastante maior que na corda de perlon, o que facilita o trabalho de

um fiddler ao tocar duas ou três cordas simultaneamente. E, pelo mesmo motivo, o cavalete

é ajustado para que as cordas fiquem mais próximas do espelho. Este conjunto de medidas

faz com que certas técnicas, como mudanças de corda rápidas e acordes, sejam mais admi-

nistráveis. Seguem, então, outras consequências. Observamos que a pestana também fica

mais baixa, saindo em média de 0,35 mm para cordas de perlon para 0,20 mm, para aliviar

a maior tensão na região. Isto também porque a corda, sendo de aço, se deforma menos (a

corda lá requer mais pressão de arco para alcançar o nível das vizinhas ré e mi). E voltando

ao cavalete: é mais espesso – oscilando conforme a densidade da madeira, a espessura dos

pés fica em torno de 4,5 mm no violino de orquestra e 5 mm para o violino de corda de aço

- para resistir à pressão exercida pelo conjunto das cordas. Partindo dos pés do cavalete, a

espessura diminui gradualmente, ficando entre 1,3 e 1,5 mm na extremidade onde as cor-

das se apoiam. A diferença de pressão exercida entre os tipos de cordas sobre o cavalete

faz com que suas perfurações sejam mais abertas nos violinos de orquestra e menos aberta

(mais íntegro) para corda de aço.

A alma, que, por baixo do tampo, suporta boa parte de sua tensão, irá mudar mais

para perto do cavalete, caso se busque um timbre mais brilhante, metálico, enquanto nos

instrumentos de orquestra se preserva o timbre mais doce e amadeirado. Esta diferente

montagem acaba exigindo, a rigor, uma diferença estrutural no ângulo do braço do violino.

A reta que contém o segmento longitudinal central do espelho (a junção do ponto mais alto

de cada seção transversal) até o centro do tampo tem 28 mm de altura na posição do cava-

lete. Com cordas de aço, esta altura é reduzida para aliviar a tensão dada pela resultante

dos vetores, com 26 e 27 mm de altura. Finalmente, outra consequência da escolha por

cordas de aço é o rabicho mais forte para resistir à tensão mais elevada, recorrendo-se a

um fio bem grosso no caso de tripa (como corda de violoncelo de música antiga) ou nylon,

ou mesmo um fio metálico.

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A terceira diferença diz respeito aos acessórios. Dada a limitação da técnica, que

abre mão dos saltos de posição - como ocorre no violino barroco - são dispensáveis a espa-

leira e a queixeira. Alguns fiddlers cantam enquanto tocam, e portanto apoiam o instrumen-

to no antebraço, não entre queixo e ombro. Reporta-se o uso de microafinadores. Quanto

ao arco, há prováveis diferenças estruturais. Pode-se recorrer a um breu com mais atrito,

para vencer a inércia da corda de aço. Não há diferença quanto às cravelhas.

Diante destes fatos, tem-se um instrumento diferente do violino erudito, quase

tanto quanto é o violino barroco. São diferenças quanto ao uso efetivo e à identidade do

instrumento como representação social, a exemplo do que foi feito para a viola caipira por

Schmid et al. (2017). Nesse escopo, Berthoud (2002) é irônico ao mencionar que existem,

sim, diferenças físicas: um violino é brilhante e limpo, já o fiddle, pode apresentar resíduos

de breu, para não mencionar uma mancha de cerveja e um distinto aroma de fumaça de ci-

garro).

2.1. A música irlandesa da antiguidade até meados do século XIX e a presença do fiddle

Consta no século IV a cristianização da Irlanda por São Patrício (377-461). Nascido

na Inglaterra, de família bretã, convertida ao Cristianismo na Inglaterra, aos dezesseis anos

foi sequestrado por piratas irlandeses e feito escravo. Fugiu e entrou no mosteiro de Ésir,

em Auxerre, na Gália (atual França). Em 432, como bispo, retornou à Irlanda para evangeli-

zar as pessoas. Cahill (1995) relata que soube transmutar as virtudes pagãs de lealdade,

coragem e generosidade nos equivalentes cristãos de fé, esperança e caridade. Diz a lenda

que usou o trevo para explicar aos pagãos a Santíssima Trindade, o que explicaria ser o

trevo símbolo da Irlanda, com a cor verde presente na bandeira. Seu nome em gaélico é Pá-

draig, nome com que muitos irlandeses são batizados até hoje, com apelido Paddy.

No século VII D.C., segundo o relato de Cusak (1868), viveram na França os evan-

gelizadores S.Fiacre e S.Fursey. A fama dos irlandeses por suas habilidades na música era

tão bem conhecida no continente neste período que este último foi convidado por Sta. Ger-

trudes (628-659), filha do rei Pepino e da abadessa de Nivelle, em Brabant, a lhe enviar os

irmãos S.Foillan e S.Ultan, para ensinar música sacra.

Flood (1905) escreveu detalhado relato do princípio da música na Irlanda e relata

que, antes de ser estabelecido pelo Papa Gregório o (depois chamado) canto gregoriano, os

irlandeses já tinham tablatura, escala diatônica, contraponto e formas musicais. Flood

menciona como primeira referência ao fiddle as Lectures do celtólogo Eugene O' Curry

(1796-1862), que traduziu do gaélico, um poema sobre a Fada de Carman, no livro de

Leinster (hoje na biblioteca do Trinity College, em Dublim). Lá, ao lado de harpa e outros

instrumentos de corda, sopro e percussão, menciona o fidil. Mas seria cedo demais; Haigh

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(2021), que menciona o arco mais antigo do século XI, encontrado junto com um fiddle me-

dieval. O arco é de dogwood (gênero Cornus), arbusto florido comum na Europa, América

do Norte e Ásia, e tem uma cabeça animal entalhada na ponta.

Giraldus Cambrensis, eclesiástico, historiador e escritor (1146 – c. 1223) publicou,

em 1187, a Topographia Hibernica (Topografia da Irlanda), em que inicialmente caracteriza o

povo da ilha como de hábitos os mais rudes, porém na música incomparavelmente mais ha-

bilidosos que qualquer outra nação que eu já tenha visto. Fala em agilidade, doçura e agra-

dabilidade do som, e em proporção e harmonia da música (embora não seja claro, hoje, o

significado musical dessas expressões). Afirmou também que a Irlanda usa somente dois

instrumentos, a harpa, com cordas de latão ao invés de couro, e o tabor, enquanto que a Es-

cócia usava a harpa, o tambor e o crowd (uma espécie de harpa tocada com arco), e Gales, a

harpa, as gaitas (pipes) e o crowd.

Desde o final da Idade Média, a Irlanda se submeteu à dominação estrangeira em

três diferentes etapas. Primeiro, os mercenários da Normandia, chamados para auxiliar

num combate, acabaram tomando o poder em final do século XIV. Depois, a dominação in-

glesa: o Rei Henrique VIII foi proclamado em 1541, pelo parlamento irlandês, rei da Irlan-

da; sua filha com Ana Bolena, Elizabeth I, foi a última da dinastia Tudor. Com sua morte, o

trono da Inglaterra foi, em 1603, preenchido pelo rei James I, da Escócia (Jacobus em la-

tim), inaugurando o período do chamado Jacobitismo. Era a dominação escocesa.

Neste ponto, podemos diferenciar fiddle de violino, menos como um objeto físico,

do que como uma tradição de execução. Desde o final do séc. XVI, início do barroco, a músi-

ca instrumental com poucos intérpretes, influenciada por Londres e esta, pela Europa Con-

tinental, era prática popular na Irlanda, já utilizando o violino italiano, adotado como um

fiddle e que se consagrou.

Haigh (2021) associa a popularização do fiddle ao declínio da harpa, instrumento

da classe superior da Irlanda, que foi sendo eliminada pelos dominadores. A civilização ga-

élica sobreviveu entre as pessoas ordinárias, que seguiram falando irlandês (ou gaélico),

idioma que se manteve até hoje. O confisco de terras tornou a Irlanda um país de grandes

propriedades. Ao redor das casas dos proprietários, de religião protestante e leais à coroa,

viviam algumas dezenas de pessoas, das famílias dos arrendatários. Aos católicos, era proi-

bida a posse de terras. Usavam técnicas agrícolas inferiores às dos camponeses da Inglater-

ra e eram mais pobres. Pouco se sabe de suas vidas, além do folclore e das fontes literárias.

A economia se manteve principalmente rural, com exceção de Ulster (Irlanda do Norte),

industrializada e que no séc. XX seria mantida parte da Grã Bretanha. A população foi au-

mentando e cresceu a prática da sublocação. Uma relação de certa forma feudal se manteve

para dentro da Idade Moderna (BRITANNICA, 2021; ANCESTORNETWORK, 2021). Para Al-

len e O'Doherty (1985), a limitação material dos camponeses da Irlanda acabou propician-

do a preservação de uma música de dança europeia que, em outros lugares, saiu de moda e

praticamente se perdeu.

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O fiddle era mais barato e "mais fácil de tocar" e vicejou no meio rural da Irlanda.

Segundo Haigh (2021), era tocado solo para dança nas cozinhas de fazendas, ou casamen-

tos, ou feiras, corridas e esquinas. Era prático e funcional. Fiddlers profissionais iriam viajar

muitas milhas ao redor de sua cidade, e a tradição era passada de pai para filho.

Em 1674, o eclesiástico e historiador Richard Head (citado por O’HALLMHURAIN,

2017) teria afirmado que "domingo é o dia de mais entretenimento que eles têm, no qual

eles usam todas as maneiras de esporte; em cada campo um fiddle, e as senhoras sapate-

ando até não poder mais." O editor do guia da APA Publications para a Irlanda, Hoefer

(1992), menciona diversos relatos da época sobre a musicalidade da Irlanda; prevalece o

que fora observado por um ou outro na Idade Média, e também hoje: o viajante "irá encon-

trar uma traditional music session num bar ou outro em cada aldeia ou lugarejo, especial-

mente nos finais de semana; e não será algo preparado para turistas; irá refletir uma tradi-

ção musical autêntica que vem de séculos." Mas Hoefer considera exagerada a afirmação de

Head, que demandaria a atividade ininterrupta de fábricas de violino.

Contrapomos aqui um entendimento distinto. A população da Irlanda em 1804 era

de 5,4 milhões, e havia na ilha de oito a dez mil propriedades rurais.

No final do séc. XVIII, somente de três luthiers de Dublim se tem registrados 7500

fiddles: John Delanius e William Wilkinson, juntos, passaram de 4500 instrumentos, e

Thomas Perry1 construiu, de 1760 a 1818, mais de 3000 fiddles (CREHAN, 2010). Consta,

em 1825, um número máximo de 42 luthiers em Dublim. Por fim, não é razoável julgar que

um destes luthiers do século XVII trabalhasse sob o padrão de exigência de um violinista

profissional dos dias de hoje. Portanto, há indícios de que havia, de fato, muitos instrumen-

tos na ilha.

Para Smith (1997), a sociedade irlandesa até 1840 era, apesar de pobre, musical, e

a música estava presente no tecido da sociedade. O fiddler e o uillean piper viviam ocupa-

dos em casamentos e velórios, feiras e mercados. A fonte britânica Historyhome (2021)

procura desfazer o mito da completa pobreza rural na Irlanda à época anterior à grande

fome. Também relata casos de bom relacionamento entre os arrendatários e o senhorio.

Visitantes à Irlanda nos séculos XVIII e XIX, quando a maior parte da música sur-

giu, relatavam a prática de música e dança (HOEFER, 1992) por que os irlandeses tinham

um apetite insaciável segundo Cooper (1995), que menciona "danças de encruzilhada", ao

ar livre, no verão, e no inverno a música em cozinhas de fazendas - frequentemente com

pouca mobília, e um piso de laje, ideal para a dança.

Segundo Cotaggeology (2021), os chalés (cottages) surgiram ao longo do séc. XVIII

com base em técnicas de construção copiadas das big houses. Antes disto, vivia-se em caba-

1 Thomas Perry (1767-1800) foi um renomado luthier de Dublim. Fez muitos violinos com grande habilidade; tom doce e verniz da voluta quase transparente. Copiou em grande parte Amati.

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nas redondas, de wattle and daub (einxaimel), reunidas em comunidade e cercada por um

fosso de defesa. Há restos destes assentamentos até hoje. Mas em 1841, 40% das casas ir-

landesas eram de terra, de um único cômodo, com chão de terra natural, sem janelas e sem

chaminés. Mobiliário e equipamentos de cozinha nessas cabanas eram primitivos (HIS-

TORYHOME, 2021), logo, duplamente desqualificadas para ali acontecer a dança. Portanto,

faz sentido a afirmação feita, em 1681, por Thomas Dineley (apud O’HALLMHURAIN, 2017)

de que eles estão agora muito viciados (em domingos, depois da gaita de fole, harpa irlande-

sa e Jews Harpe) a dançar de acordo com suas modas rurais (isto é) a 'long dance', uma de-

pois da outra de todas as condições, senhor, senhora, servos.

Entre 1740-1741, sobreveio uma onda de fome (menos lembrada) que matou cer-

ca de 400 mil pessoas. Mas a conhecida grande onda de fome se iniciou em 1845 e perdu-

rou por pelo menos quatro anos. A batata era a principal fonte de alimentação dos irlande-

ses mais pobres, seguida da aveia. A cultura de batata foi em grande parte contaminada por

um fungo que destruía folhas e tubérculos, chamado blight ou Phylotophthora infestans. Es-

te episódio foi de proporção tal que provocou abalo demográfico, causando a morte de um

milhão e a saída de mais de um milhão de irlandeses do país, que emigraram para a Ingla-

terra, a América do Norte e também a Oceania. O romance Trinity, de Leon Uris, dissemi-

nou uma ideia do espírito da época, retratando a vida cultural e a luta política entre a gran-

de fome e a conquista da independência. O autor, americano de origem judaica, casado com

uma americana de origem irlandesa, viajou vários meses pela Irlanda em pesquisa para a

obra. A pobreza, mas também a vida social, a celebração, alguma coisa que sustentasse uma

vontade de viver combinam com a ideia de música e dança.

2.2. Publicação de música: 300 anos do início tímido até o abran-gente registro da tradição oral

O'hAllmhurian (2017) relata como da música irlandesa, embora uma arte essenci-

almente oral, parte encontrou o caminho para as coleções inglesas ainda no séc. XVII . A

primeira canção irlandesa a ser publicada foi Cailin ó Chois tSiúri Mé (Eu sou uma garota

dos bancos do sul), que aparece no Lute Book (livro para o alaúde) de William Ballet, ma-

nuscrito conservado no Trinity College, e no Fitzwilliam Virginal Book. Outras canções apa-

recem no The Dancing Master), de Playford e no Pills to Purge Melancholy, de D'Urfey, am-

bos publicados em Londres na segunda metade do séc. XVII. A primeira coletânea exclusiva

de música irlandesa, por John e William Neal, a Collection of the Most Celebrated Irish Tunes,

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de 1726, contém, além de algumas árias populares, várias das melodias de Turlough O'Ca-

rolan (1670-1738)2. Sobre este conhecido harpista, afirma O’hAllmhurain:

“vivia numa época em que a sociedade irlandesa estava experimentando grande agitação política e religiosa. O velho sistema gaélico de patronagem artística esta-va definhando, enquanto a conversão forçosa ao Protestantismo estava se tornan-do comum depois da introduão das leis penais no final do séc. XVII. Astutamente cônscio do seu ambiente de trabalho, O'Carolan adaptou seu trabalho para servir ao gosto e status do seu público. Sua música continha uma mistura eclética de me-lodias irlandesas e não-irlandesas, compostas numa variedade de dialetos, do bar-roco à música de dança vernaclar. Uma coleção da sua obra foi publicada durante sua própria vida. Como muitos dos seus predecessores, ele "eulogisava" os dois grandes amores de sua vida, mulheres e whisky, em melodias como "Bridget Crui-se" e a celebrada "receita para beber". Muito de sua obra barroca foi inspirada por compositores italianos como Corelli e Geminiani e dedicadas a jovens menbros da família Dillon de Lough Glynn e para os Burkes de Glinsk, ambas famílias Norman-das com aspirações 'modernas'. Seus planxties (de plearácha, ou peças de louvor) para os MacDermott Roes e os O'Connors de Connacht evocavam um mundo mais velho dos bardos e os duanaire.”

A coleção dos irmãos Neal é tratada por Dowling (apud WHITE, 2016) como uma

transcrição de melodias em que se abandonou a letra original, que sugere a edição "des-

preocupada em preservar a música antiga". Especulamos se, de fato, chegou a haver letras

para os rápidos reels e jigs - é música muito mais no idioma instrumental e dançante do que

algo feito para o canto; se a tradição oral era associada ao canto, ou tratava-se mais rigoro-

samente de uma tradição instrumental, transmitida de memória; e se houve letras, não te-

riam se perdido no momento da notação? Pois isto se deu nos EUA, por descendentes, e é

provavelmente mais fácil escrever música (melodias simples) que escrever letras em gaéli-

co. Para todos os efeitos, Dowling caracteriza o que hoje se denomina música tradicional

como um constructo da modernidade, designando o período a partir do colapso da música

gaélica no séc. XVIII e da assimilação da música de dança no final do séc. XVII e começo do

séc. XVIII. Este argumento coloca em dúvida o termo "música celta" hoje corrente. Para

O’hAllmhurain (2017), não há conexões tangíveis com a música dos antigos celtas, senão a

música das terras celtas.

Outras publicações do séc. XVIII são mencionadas por O’hAllmhurain (2017): a

Aria di Camera de Wright (1730) e a Burke Thumoth Collection (1750). Depois, John Lee

publicou duas coleções, em 1774 e 1780, a segunda contendo melodias do gaiteiro Waltker

Jackson, de Limerick. A obra Historical Memoirs of the Irish Bards foi publicado por Joseph

Cooper Walker, em 1786. Brysson publicou A Curious Selection of Favourite Tunes with Va-

riations, em Edimburgo, contendo 50 árias irlandesas.

Em 1809, aconteceu a segunda edição, revista, da coletânea de música irlandesa de

harpa por Edward Bunting, cuja importância é mencionada num artigo por Russell (2006).

2 Há em especial uma composição de O'Carolan, o "Draught", que se parece em melodia e harmonia com uma bourrée de Georg Friedrich Handel (1685-1759). Ora, este teve notória passagem por Dublin, em que se deu, num salão pouco espaçoso do Fishamble Street, o lançamento do seu oratório Messias. Não temos elementos para afirmar quem copiou quem.

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Na sua introdução, Bunting mostra-se preocupado com uma possível extinção da harpa e

explica como isto o motivou à pesquisa, procurando registrar melodias dos mestres Caro-

lan, Conolan e outros já esquecidos. Recorreu a um método que hoje seria chamado "painel

de especialistas": promoveu o encontro de dez harpistas da Irlanda, em Belfast, em

12/7/1792, e nele anotou o que ouvia. Declara sobre o evento:

“as melodias mais antigas eram, neste respeito, as mais perfeitas, admitindo a adi-ção de um baixo com mais facilidade que as mais novas. Foi observado que seus instrumentos estavam afinados num sistema uniforme, embora os intérpretes fos-sem ignorantes do princípio. Um motivo principal de convencer tais frágeis rema-nescentes dos bardos foi procurar cópias mais puras das melodias já nas mãos dos profissionais, e perpetuar uma variedade de outras extremamente antigas, das quais não havia cópias e que eram mais passíveis de ser perdidas; tais finalidades propostas foram parcialmente obtidas pelo encontro mencionado, e foram desde então aprimoradas pelo trabalho do editor.”

E ainda falando de si afirma:

“Fluente como ele é nas composições das escolas Italianas e Alemãs, ele está con-vencido que onde o gosto do público for puro, a música original da Irlanda será ouvida com deleite. O intérprete irá fazer o favor de lembrar que as velhas melodi-as de um país e sua linguagem são análogas; que há delicadezas idiomáticas em ambas, para entrar em cujo espírito a prática e a atenção estrita ao tempo de cada área são necessárias, e isto é peculiarmente o caso das composições mais antigas.”

Haigh argumenta que as uileann pipes começaram a ser usadas no séc. 18, e eram

de status supostamente superior ao fiddle, mas nunca comparáveis em número. A maioria

das melodias (tunes) no repertório atual foram escritas para fiddle antes que para gaitas ou

mesmo whistles e flautas fossem introduzidas, no séc. 19. Para Haigh, a fome de 1845-49 foi

uma oportunidade porque deslocando os irlandeses mais abastados para os EUA, permitiu

que lá a cultura do fiddle se fortalecesse encontrando audiência.

Smith (1997) explora duas tendências ocorridas no século XIX depois da grande

fome: a estandardização das melodias tradicionais, e a admissão de diferenças regionais na

prática da música tradicional - este último fato vinculado à forte redução da população e

fechamento de comunidades em si. Afirma, justificando a estandardização, que:

“uma música tradicional, especialmente o produto de uma tradição exclusivamen-te auditiva, é uma entidade frágil. Sua performance é efêmera, criada para o mo-mento e desaparecendo imediatamente depois. Sua perserverança depende da energia e memória dos músicos, seu desejo de ensinar novos músicos, e o interes-se durador de cada sucessiva geração no valor e continuidade do empreendimen-to. Num mundo crescentemente sujeito a extinções, tanto biológicas como cultu-rais, tal ofício para o prazer do momento parece extravagante. A sobrevivência da tradição musical irlandesa até o dia presente é verdadeiramente milagrosa, pois é somente uma de muitas formas de música que se nos oferecem de todo o mundo.”

Em 1851, foi formada a Society for the Preservation and Publication of the Melodies

of Ireland, em parte pelo colecionador George Petrie. Além da fome e do risco de desapare-

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cimento das melodias, havia as atitudes românticas do séc. XIX, que encorajavam a procura

pela expressão pura, desinibida de cultura popular. A Gaelic League foi criada em 1893 pa-

ra promover o idioma irlandês e organizou os primeiros céilidhe - encontros para música,

dança e contação de história ao redor do fogo.

Sucedeu a coletânea, publicada em Chicago, pelo superintendente de polícia Fran-

cis O'Neill (auxiliado pelo colega James O'Neill), a primeira edição em 1903, e outra em

1907. De acordo com Haigh, são de bastante autenticidade, ao contrário das melodias de

Bunting (adaptadas para o piano). Consta que O'Neill se valeu do gravador de cilindro de

Thomas Edison para registro, e ao menos um cilindro foi redescoberto em 2003. Apresen-

tou cada tune com o título em inglês e em gaélico. São 1001 danças compreendendo double

jigs, single jigs, hop ou slip jigs (compassos ternários), reels (compassos quaternários e an-

damento em geral muito rápido), hornpipes (quaternários, com a figura de colcheia pontu-

ada), long dances etc.

O próprio autor da compilação explica sobre a origem italiana do jig (nas obras de

Veracini e Geminiani). Aceita também a menos compreendida origem italiana dos reel - que

são ritmos cuja relação com o continente é bem menos clara. Declarando-se respeitoso da

erudição dos cultores tão somente da música antiga e tradicional do país, recomenda no

entanto averiguar até que ponto se justifica reivindicar alguma considerável antiguidade pa-

ra as danças irlandesas e a música para a dança.

3. A MÚSICA IRLANDESA NOS SÉC. XX E XXI E O QUE É FEITO DO FIDDLE

A obra de O'Neill retrata um interesse crescente pela Irlanda de fora dela. Stephen

Lucius Gwynn escreveu, em 1912, sobre a província de Connaught: lá havia um colégio pa-

ra o estudo do idioma irlandês que era alternado por festividades: verdadeiros céilidhe.

Enquanto que a primeira Guerra Mundial aniquilou a vida rural em boa parte da Europa, a

Irlanda pouco foi afetada, tampouco na segunda, e isto contribuiu para a preservação da

música tradicional (ALLEN & O'DOHERTY, 1985).

No séc. XX, nos anos 20, aconteceu nos EUA a gravação em LPs em 78 rpm de mú-

sica tradicional irlandesa pelos fiddlers Michael Coleman, James Morrison e Paddy Killoran.

Tocava-se no estilo sligo (do condado de mesmo nome): altamente ornamentado e expres-

sivo, com acompanhamento de piano ou arranjos com gaitas, banjo, acordeon e flauta. Ber-

thoud (2002) reclama que o destaque dado a tais gravações nos início do séc. XX teria sido

indutor de uma uniformização do estilo, diminuindo diferenças regionais. Kearney (2007)

fala de uma cultura que não se restringe ao perímetro de uma ilha. Haigh (2021) afirma

que as gravações no "estilo New York" começaram a erodir e por fim destruir em grande

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parte o enorme e diverso patchwork de estilos que haviam se desenvolvido Irlanda aden-

tro.

McCullough (1977) observa que estilos da música tradicional irlandesa surgiram

de diversas fontes, e que estão continuamente passando por mudanças. Cada estilo é es-

sencialmente uma conglomeração de elementos absorvidos inconscientemente ou apropri-

ados de outros estilos e então reformados e refinados num "novo" estilo "distinto embora

nunca inteiramente divorciado de seus predecessores ou contemporâneos." Fala de idios-

sincrasia e de tradição, com normas estilísticas tácitas. Por fim, se declara a favor da in-

fluência das gravações na diversificação de estilos, e afirma:

“o estilo na música tradicional irlandesa, embora guiado por certas convenções, não é percebido pelos músicos tradicionais como um conjunto de normas rígido e estático, que deva ser dogmática ou servilmente seguido. É, o oposto disto, um meio flexível, sensível ao contexto, pelo qual a expressão musical de um indivíduo pode ganhar forma e substância que irão investir suas apresentações de valores comunicativos”.

Se os discos tiveram efeito homogeneizador, acreditamos mais ainda num efeito

disseminador, por oferecer a quem escuta um maior leque do que escutaria se tivesse que

depender da experiência ao vivo. Isto teria fomentado a consciência da diversidade.

De acordo com Haigh (2021), na Irlanda, na primeira metade do séc. XX, a dança

que acontecia nas casas passou a ser formalizada pela Gaelic League, e foi sendo mal vista

pela Igreja. A música passou a acontecer nos dance halls e com acompanhamento de piano

e uso de outros instrumentos mais eruditos. Registros de então mostram eventos paroqui-

ais, de atmosfera muito diferente dos shows da segunda metade do século XX. A semelhan-

ça com suposta instrumentação original era um item menos buscado, mas provavelmente o

maior proveito social, com instrumentos acústicos suficientemente potentes para os espa-

ços, ainda na ausência de amplificação eletrônica.

Em 1926, surgiu a rádio estatal da Irlanda (Irish Free State, em 1921) para fomen-

tar o nacionalismo e era muito frequente a apresentação de um trio de fiddle, piano e flauta.

A Igreja e o governo lançaram o Dance Halls Act em 1935. Havia a percepção (expressa em

1924 pelo bispo de Galway) da troca das danças nacionais, saudáveis, e importação de dan-

ças malignas de Londres, Paris e Nova Iorque.

A música irlandesa experimentou uma derrocada nos anos 40 e 50 com a ascenção

do swing e do rock. Um grupo de músicos, preocupados, criou, em 1951, em Dublin, o

Comhaltas Ceoltoiri Eireann (“gathering of musicians of Ireland”), ou simplesmente

Comhaltas (pronunciado em inglês como key-ol-tas). O objetivo desse grupo era instigar um

reavivamento da música tradicional irlandesa, promovendo ainda a dança, a linguagem e

um senso de comunidade. Estabeleceu-se um festival anual, contendo uma competição na-

cional, The Fleadh. A ideia se espalhou pela Irlanda e pelo mundo. Novamente, a populari-

zação traz o risco de uniformização. Kearney (2007) destaca a dificuldade do movimento

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se manter longe de política e do nacionalismo, e o consenso mais recente em favor de paci-

fismo e inclusão. Critica no The Fleadh o desenvolvimento de uma sonoridade Comhaltas

por imposição de regras, celebração de certos indivíduos e a imitação de vencedores anterio-

res.

Nos anos 60, um especial impulso foi recebido do movimento folk nos EUA. A par-

tir deste movimento, Seán Ó Riada, com origem tradicional e formação clássica, cuidando

de arranjos com textura e harmonias (quase música de câmera) criou a banda Ceoltóiri

Chualann (com os fiddlers Sean Keane, Martin Fay e John Kelly). Foi pioneiro no uso do bo-

dhrán, tambor de moldura originário do séc.XX, a partir de peneiras de grãos (HARTE,

2019). A banda durou pouco, mas abriu caminho para a famosa banda The Chieftains (por

que passaram os fiddlers Martin Fay e Sean Keane), que circulou pelo mundo. No final dos

anos 60, o folk impulsionou novamente a música irlandesa. A experimentação trouxe acor-

deão, violão e bouzouki. Surgiram as importantes bandas Planxty (com os fiddlers Tommy

Peoples, Paddy Glackin e Kevin Burke), Bothy Band (com Tommy Peoples e Kevin Burke),

Altan (com a fiddler Mairead Ni Mhaonaigh) e De Dannan (com Frankie Gavin, discípulo de

Paddy Killoran). Kevin Burke, nos EUA, se aproximou do folk através de Arlo Guthrie, filho

de Woody Guthrie, que o convidou para tocar no LP Last of Brooklyn Cowboys; consolidou

seu estilo e adotou aquele país para viver. Buscou-se autenticidade, com a admissão de no-

vas influências e da amplificação eletrônica; o que se obteve foi uma nova identidade. É im-

provável que esta música, que se pretendia tradicional, tivesse soado exatamente assim al-

gum dia.

Calvo-Sotelo (2017) menciona que a música celta estava bem estabelecida no meio

dos anos 1970 e já tinha um caráter romântico, naturalista, de uma filosofia altruísta, um

progressismo moderado, conotações espirituais e verniz juvenil com claras influências do

rock.

Uma terceira onda de popularizacão da música tradicional irlandesa ocorreu então

nos anos 90. Era um momento de afluência econômica. Havia algum desencantamento de-

pois da era hippie e da contracultura - as gerações X e Y se mostravam menos beligerantes e

mais interessadas na evasão, portanto aceitaram bem o mito celta e sua música como solu-

ção para a identidade pessoal e coletiva. Por outro lado, como narra Calvo-Sotelo (2017), a

Europa queria competir com a América do Norte e a Ásia. Isto requeria união, e a lingua-

gem seria uma barreira. Faltava, pois, uma explicação étnica para justificar a União Euro-

peia. Sobre que relação têm os dois processos, cabe uma explicação. A Itália, pátria do vio-

lino (fiddle nas mãos dos irlandeses), e berço dos jigs, mais uma vez entra em cena. Segun-

do o mesmo autor, foi decisiva a exposição inaugurada em Veneza, em 1991, (um ano antes

do Tratado de Maastricht) chamada I Celti: La prima Europa. Embora construída sobre um

argumento historicamente discutível - de etnicidade como base da cultura - obteve pleno

êxito. Foi visitada por mais de um milhão de pessoas. Depois de Glasgow), em 1990, Dublin

foi designada a capital Europeia da Cultura em 1991. A presidência do conselho da UE fora

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irlandesa), em 1990, e o seria em 1996 e 2004. Alusões à cultura celta foram inseridas em

empreendimentos tão diversos quanto novelas, poemas, canções, filmes (Titanic e Bra-

veheart), novas revistas científicas e propagandas de megacorporações (ao som de uileann

pipes e fiddle). Calvo-Sotelo relata ainda os parques temáticos Parc Astérix), próximo de Pa-

ris, e o Celtworld), em Tramore (Irlanda), como indícios da "celtomania"; foram empreen-

dimentos de curtíssima longevidade; o reavivamento celta perdurou, associado com espiri-

tualidade, artes, música, shows e filmes. Kearney (2007) explica como, nos anos 90, com a

expansão da União Europeia, a Irlanda tigre celta passou a ser um destino migratório. O pa-

ís oferece ao mundo alguns clichês comerciais: a empresa aérea Ryanair, que permitiu a

milhões de pessoas viajar pela Europa a baixos custos, os duendes (leprechauns) e o "licor

global" Bailey's.

Segundo Sotelo-Calvo (2017), depois da exposição de 1991, a música chamada cel-

ta se expandiu indefinidamente. A Irlanda foi o país que dela mais se beneficiou, recebendo

muitos fundos. Foi criada uma cátedra de música irlandesa na Universidade de Limerick.

Nos anos 90, os Chieftains venceram diversos Grammy, depois de terem sido antes somente

nomeados. Com eles, Altan, Patrick Cassidy e the Corrs atingiram um pico; artistas irlande-

ses, em 2003, venderam 56 milhões de álbuns - 2,3% dos CDs vendidos em todo o mundo.

Enya teria sido a primeira artista irlandesa a conquistar popularidade internacional e, em

1994, foi a vez do Riverdance, que tentava desfazer a imagem de uma Irlanda paroquial,

com sua lembrança de fome e imigração, para criar uma nova Irlanda, integrada à União

Europeia. Musicalmente, calam-se as vozes de protesto e entra o instrumental (sem letra) e

de forma diversificada, de modo a ilustrar a diversidade europeia: bodhrán, bouzouki, ban-

jo, castanets, darbuka, harpa, fiddle, gaita de foles, bombarde, tin whistle, hurdy- gurdy, did-

geridoo. Sobre este último, observe-se que se trata de um instrumento dos aborígenes da

Austrália. Ainda, saxophone, sitar, violoncello, nyckelharpa, além dos instrumentos do rock.

As gaitas de fole se tornaram um símbolo: surgiram muitas bandas ao redor de gaitas de fo-

le, e bandas de gaitas de fole. Sugerem antiguidade, raízes europeias e autenticidade. Men-

cione-se também os festivais, e com destaque o Eurovision. Foi vencido pela Irlanda de

1990 a 1997. No Canadá, a fiddler e dançarina Natalie MacMaster (de Cape Breton) e a can-

tora Loreena McKennitt tiveram considerável produção nos anos 90. A onda celta chegou

na Austrália, e ainda, mesmo que mais fraca, na África do Sul, na América do Sul e no Japão.

Além da Irlanda, os Estados Unidos se destacaram nos negócios viabilizados com a

celtomania, e a Irlanda passou a ser vista como extensão do Vale do Silício, senão dos pró-

prios EUA. A Irlanda se coloca no duplo papel de uma extensão dos EUA pelo investimento

desse, e um país de terceiro mundo (pela dependência externa). Fagan (2003) relata que,

em 2001, a Irlanda havia sido colocada no topo de uma lista referente a globalização. O mo-

tivo aparente foi uma redução nos impostos sobre empresas, até ocupar a posição dos mais

baixos da Europa. Entretanto, o elemento cultural é claramente parte do "tigre celta" e a

economia política tem um forte componente cultural.

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Cooper (1995) relata que haviam chegado até então seis mil melodias de dança.

Mas destaca o fato da herança como transformação:

“Conscientemente ou não, intérpretes modificam as melodias de acordo com seu gosto, capacidade e limitações. O compositor é esquecido -nomes nos títulos das melodias frequentemente se referem à pessoa de quem a melodia foi aprendida - mas a melodia evolui.”

Fagan (2003) mencionava ser a tradição na música irlandesa sempre inventada -

seja aquela dos anos 20, como a dos 60 e a dos 90. A primeira, uma reconstrução irlandesa;

a segunda, americana, e a terceira, global. E decorridas duas décadas e meia da campanha

ambiciosa para reforçar a identidade do continente europeu, Calvo-Sotelo defende a tese

de que a ideia da Europa como uma entidade política é profundamente alheia ao espírito

celta. Argumenta com a crise grega de 2015, os desdobramentos da política nos continen-

tes e o euro-ceticismo do Reino Unido.

Rapuano (2009) menciona o quanto o musical Riverdance, mesmo sendo pouco

autêntico, contribuiu para atrair o interesse internacional, em especial de cidadãos dos

EUA, pela música irlandesa tradicional. Trata a procura por identidade nas sessions irlande-

sas que passaram a prosperar na Irlanda como "em qualquer lugar" e a busca por irishness,

caráter irlandês, da parte dos participantes, a maior parte não-irlandeses. Afirmando que

tais pessoas nunca se tornarão irlandesas, elas ao menos representam a parte do músico 'ir-

landês', enquanto mantêm suas outras identificações culturais. A autora expressa a opinião

de ser a cultura em que uma pessoa é nascida nunca realmente visível, por óbvia demais, e

suas hipóteses parecem autoevidentes; somente através do contraste com outra que a cul-

tura própria se tornaria evidente: como parte de um rito de passagem para comunidade mu-

sical, muitos músicos parecem se deixar absorver em mais que música... parecem obcecados

com tudo que for conectado com a cultura irlandesa. Manifestações desse comportamento

incluem adotar sobrenome irlandês e a narrativa familiar fantástica de um passado nos

highlands.

Em síntese, estamos tratando de uma música designada irlandesa, menos por um

caráter nativo e mais por sua histórica assimilação na ilha, em que se manteve ao longo das

décadas. Somente com relação ao fiddle, neste último episódio de disseminação a partir dos

anos 90, não se pode falar que esteve em evidência comercial comparável à dos anos 20:

não há evidência de alguma celebridade do fiddle que se faz conhecer fora do contexto de

sua banda ou do público da Música Irlandesa Tradicional. É algo diferente o que ocorre no

violinio erudito, de que a fama dos solistas parece transcender a popularidade da música

em si.

Um último fenômeno a mencionarmos será o da circularidade de influências. Stan-

ton and Schofield (2019) empreenderam um estudo do country britânico como um movi-

mento circular. Habitantes das Ilhas Britânicas emigraram para os Apalaches - em busca de

alimento, segurança, oportunidades. Ao partir, não deixaram tudo para trás. Carregaram

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coisas que poderiam lhes trazer conforto e coragem na nova casa. Chamam o fiddle o com-

panheiro de viagem portátil. A prática social dos encontros de fiddlers, os ceilidh, se torna-

ram reunião no alpendre e rodas de música country. A acentuação sincopada (off-beat),

comum entre os fiddlers irlandeses, assim como na canção escocesa, teria agradado as pes-

soas de origem africana, assim como as escalas incompletas e modos africanos encontra-

ram assemelhados na tradição gaélica. A música country passou a ser chamada como tal

(ou hillbilly) em 1965. Por fim agora, séc. XXI, a música country é produzida nas Ilhas Britâ-

nicas e alcança enorme popularidade.

Para Stanton and Schofield (2019), pensar a música country de uma perspectiva da

herança - enfatizando raízes, origens, mudanças ao longo do tempo, valores e significância -

pode aprofundar o entendimento de como a música se tornou o que é, mesmo na era co-

mercial, e por que as pessoas continuam a responder a ela positivamente. Em sua pesquisa,

que é em parte etnográfica, os autores detectaram que ver prestigiada a sua origem geo-

gráfica é uma experiência unanimemente aceita e apreciada. Para os autores, o interesse pe-

la música de outros povos parece motivar a busca pela própria música. Afirmam que a he-

rança musical e sua obra de memória estarão sempre inacabadas. A música country é pre-

servada enquanto é modificada. Na tradição da canção de roda, ninguém tem a última pala-

vra.

4. ASPECTOS TÉCNICOS E INTERPRETATIVOS DO FIDDLE IR-LANDÊS

A seguir, empreenderemos uma compilação de características do uso da técnica e

da interpretação da Música Tradicional Irlandesa ao fiddle. A análise baseia-se numa rela-

ção de artistas selecionados do grupo mais evidente em gravações e filmagens, elaborada e

explorada de modo não-sistemático.

Como uma outra fonte de evidência, são exploradas obras didáticas sobre o fiddle

irlandês, em notação musical com recomendações textuais - com as limitações naturais de

se explicar interpretação mediante texto - por Robinson (1976) e Cooper (1995), e ainda

com gravações de apoio como principalmente na obra minuciosa de Berthoud (2002;

2008); as transcrições da obra de Carroll (2011) cujas interpretações da própria música fo-

ram aproximadas da melhor maneira em partitura; e ainda a compilação não comentada de

Barlow (1977). Neste conjunto, Berthoud é o único a anotar mais detalhadamente orna-

mentos que utiliza, advertindo seu público para o caráter não rígido de tal prática.

Embora sejam tratados aqui itens específicos de técnica como "arcadas", é difícil

separá-los da interpretação, pois, usando as definições de Johansson (2015), há aparente-

mente mais liberdade na escolha do que fazer (estilo) do que da maneira de fazê-los (técni-

ca).

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O que é idêntico? O que é autêntico? O que muda e segue mudando, de forma fiel

ao original, ao espírito dessa música?

Johansson (2015) explora as relações entre técnica instrumental e estilo musical

(que associa a assinatura pessoal e conteúdo). Trata idiossincrasias no manuseio do ins-

trumento (que causam preconceito por muitos professores e acadêmicos). Poderiam a téc-

nica e o estilo ser separados? Como é que tal sinergia ou oposicão informam e restringem o

fazer música? Johansson usa a noção de affordances3 expressivas do violino, que considera

"abertas".

4.1. Fiddlers abrangidos

Apresentamos a seguir a relação de fiddlers que constituem base para a análise. É

uma amostra não sistemática, arbitrária, a partir da percepção por um dos autores. Trata-

se de musicistas mais conhecidos e portanto cuja produção é de mais fácil acesso. Cada ar-

tista foi considerado mediante registros em áudio, vídeo e também fotografias. É uma

abordagem, portanto, fenomenológica.

Michael Coleman (1891-1945): de Sligo, mas radicou-se nos EUA e nos anos 20 realizou

gravações muito influentes, muitas vezes acompanhado com piano. Foi um virtuose, fiddle

puro.

James Morrison (1893-1947): de Sligo. Soa como um virtuose do violino, embora grava-

ções sejam ruins.

Michael Gorman (1895-1970): de Sligo: outro fiddler antológico uso de dobrados em con-

tratempo (em Mountain Road, influência aparente sobre K.Burke); linha aguda bem cons-

tante e presente.

Tommie Potts (1912-1988): de Dublin, mentor de Martin Hayes.

Sean Mc Guire:(1927-2005): de Belfast. Usa arco na metade inferior, som um pouco duro,

staccato. Autor de variações virtuosísticas que destoam de modo incômodo do fiddle tradi-

cional.

John Sheahan (1939-): de Dublin, fiddler do renomado conjunto Dubliners. Usa um som

firme, cheio, ênfase no apoio à melodia cantada. Tempos moderados. Violino soando junto

e ao estilo da uileann pipe.

Seamus Connolly (1944-): de Clare. Possivelmente o mais melodioso dos fiddlers.

3 O termo affordance foi cunhado nos anos 70 pelo psicólogo ambiental James Gibson e se tornou um conceito muito usado no campo do Design de produtos. Não há tradução para o português. Affordance é o uso, em interação com o corpo humano, a que o objeto se sugere: numa porta, a maçaneta é para torcer e puxar, a placa para empur-rar. Um degrau a 15 cm de altura é para subir, uma superfície a 45 cm de altura é para se sentar, uma superfície a 70 cm de altura alta é para apoiar objetos. O que Johansson afirmou foi que há muito mais que se fazer com o vio-lino, a partir do violino, do que fazem os músicos de orquestra. Mas quem estuda violino já encontra um estilo pronto, e procura adquirir a técnica correspondente.

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Sean Keane (1946-): de Drimnagh, tocou nos Chieftains. Virtuose, figurou nos Chieftains

até 2002, usando por vezes técnica de violino.

Tommy Peoples (1948-2018): de Donegal, antecessor de Kevin Burke na The Bothy Band:

toque original. Som delicado e uso de meigos glissandi associado a triplets (explicação abai-

xo) rápidos e estalados.

Matt Cranitch (1948-): de Sliabh Luachra, do trio Sliabh Notes, melodioso.

Kevin Burke (1950-): de Londres, de família irlandesa, mas radicado nos EUA desde os

anos 70, é considerado herdeiro de Morrison, Coleman e Killoran. Impressiona pelo forte,

porém natural apelo rítmico.

Peter Cooper (1951-): de Londres, é autor de método contendo rico material histórico e

cultural.

Frankie Gavin (1956-): de Gallway, fiddle numa proposta muito dançante. Uso original de

dobrados e tripplets (ver explicação abaixo).

Liz Carroll (1956-): de Chicago. Além de virtuose do fiddle, é uma original e prolífica com-

positora.

Cathal Hayden (1963-): de Tyrone, virtuose do fiddle e do banjo, fato que se faz notar na

força com que utiliza a mão esquerda, e no uso insistente de tripplets, apesar de muito afi-

nado e delicado nos glissandi.

Gilles Apap (1963-): de , Béjaïa, Argélia, é um violinista clássico que também toca música

irlandesa e a música popular de outras vertentes.

Eileen Ivers (1965-): de Nova Iorque. Atingiu virtuosismo no fiddle, com técnica semelhan-

te ao violino.

Philip John Berthoud (1966-): de Harare, mas crescido no Reino Unido; autor de método

muito detalhado para a assimilação do idioma do fiddle irlandês.

MacDara Ó Raghallaigh (1972-) : de Meath, fiddler que utiliza especial fraseado. Técnica

de violino.

Sharon Corr (1970-): de Louth, toca violino simples e eficaz, e faz backing vocal com as ir-

mãs e irmão na banda que tem o nome da família.

Natalie MacMaster (1972-): de Cape Breton (Canadá), dançarina e virtuose do fiddle, com

técnica de violino; Fiddle com acompanhamento contemporâneo.

Mairead Nesbitt (1979-): de Tipperary, é conhecida também por atuar no Celtic Women;

toca temas tradicionais no violino, com técnica de violino.

Alguns destes musicistas aparecem na Figura 3, que também ilustra a diferença de

postura entre fiddlers atuais. Liz Carroll e Martin Hayes usam uma mão esquerda típica do

fiddle. Já Kevin Burke e Sharon Corr usam uma mão esquerda típica do violino. Sobre a téc-

nica de arco, não há diferenças a comentar nestas fotos.

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Figura 3 - Na sequência: Liz Carroll (Cindy Funk, 2011, em https://www.flickr.com /photos/cindyfunk/6016266749); Sharon Corr (Tibor Pallerman, 2016, em https:// com-mons.wikimedia.org/wiki/File:The_Corrs_(Vienna,_2016)_18.jpg) ; Martin Hayes (Michael Coghlan, 2015, em https://www.flickr.com/photos/mikecogh/16271748093/); Kevin Burke (Mark Turner Pictures, 2014, em https://www.flickr.com/photos/thevodkacircle/14173455991/). Todas as fotos foram recorta-das.

4.2. Técnica

Da relação observada e também da literatura de apoio citada, observaremos atitu-

des que saltam aos olhos como possibilidades que destoam da técnica de violino. Revelam-

se em parte do grupo de fiddlers, e em outra não, portanto se mostram, antes, idiossincrasi-

as. São apresentadas no Quadro 2.

A Figura 4 mostra dois fiddlers na Irlanda do Norte, no século XX, registrados por

Eamonn O'Doherty em uma pesquisa de campo em Feldman & Doherty (1985).

Curiosamente, um item usado no fiddle e no violino é a passagem polifônica com

sustentação de uma nota mais longa e produção de notas curtas numa corda inferior - re-

curso usado nas sonatas e partitas para violino solo de Bach, e também com efeitos surpre-

endentemente rítmicos por Michael Gorman e Kevin Burke em tunes como Mountain Road,

College Grooves ou Farewell to Erin.

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Estas listas de itens são produto de um levantamento inicial somente, não exausti-

vo, mas que acreditamos suficiente para caracterizar uma diferença importante.

QUADRO 02

Fiddle Violino

itens em que há certa oposição:

- mão direita segurando o arco meio palmo

acima do talão, obtendo pressão mais pelo

peso do arco em bloco

- apoio da palma da mão esquerda no bra-

ço, e o punho no corpo do instrumento;

- sustentação do instrumento pelo braço,

sem uso do queixo (Figura 3), com conse-

quências:

- instrumento inclinado, caindo para a fren-

te;

- uso quase exclusivo da primeira posição;

- passagem desinibida por cordas soltas;

- uso de dobrados sustentados ou drones

em comparação com os tubos fixos da ui-

leann pipe;

- pressão constante, fazendo-se ouvir as

mudanças de arcada como um guizo.

- pronação (pressão da falange dedo indi-

cador) quando na ponta, e supinação (fei-

ta pelos dedos, em especial o mindinho)

quando no talão;

- mão esquerda em forma convexa, o pul-

so paralelo ao antebraço;

- sustentação do instrumento entre o om-

bro e o queixo (mediante uso de acessó-

rios), permitindo:

- instrumento na horizontal, ou próximo;

- mudanças frequentes de posição;

- prevenção contra cordas soltas e vibrato

frequente;

- notas duplas como sequências melódi-

cas, dedilhadas ou não, em terças, sextas

ou oitavas;

- variação de pressão e suavidade na mu-

dança de corda.

outros itens :

- em grupetos sobre cordas soltas, que exi-

giriam recuar uma corda para tocar a se-

gunda nota: ao invés de 0/1/0/-1/0 usa-se

o desenho 0/3/0/1/0;

- triplets (tercinas em staccato muito rápido

e percussivo como um "tkt");

- manutenção do arco na corda;

- ligadura levando a notas acentuadas;

- slide (glissando de meio tom subindo em

direção à nota, imitando o canto).

- uso de extensão no dedilhado;

- acordes de três e quatro cordas;

- arco fora da corda: spiccato, collé;

staccato volante e spiccato volante no -

arco subindo e, mais raro, descendo;

- acentuação na ponta (martelé);

- glissando, em geral ascendente, em in-

tervalos a partir de segunda maior;

- glissando terminando em harmônico;

- uso de harmônicos soltos ou presos.

Quadro 2 - diferenças da técnica entre o fiddle e o violino

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Figura 4 - Esq. Willie Johnson, Lack, County Tyronne e dir., Simon Doherty (1917-1987), Fintown, County Donegal. Fotos por Eamonn O'Doherty em Feldman & Doherty (1985).

4.3. Interpretação

É um tanto difícil, reiteramos, dissociar técnica (como fazer) de interpretação (que

efeito obter). Os itens acima relacionados correspondem, a longo prazo, a opções de inter-

pretação que acabam condicionando o desenvolvimento técnico.

Cabe a observação inicial que o fato de se tocar fiddle solo (e não no meio de um

naipe de orquestra) confere ao fiddler liberdade, que inclui a escolha e administração do

ritmo (em conexão com a dança); a reprodução das melodias, passando pelo número de

repetições; e mesmo a afinação, que não é critério eliminatório para se avaliar a musicali-

dade de um fiddler.

A Música Tradicional Irlandesa é basicamente dançante. Portanto, marca-se de

modo sutil, porém obstinado, os tempos fortes, visando à comunicação de um ritmo conta-

giante, um convite ao movimento corporal. Espera-se do fiddle que seja eficaz em propor

uma pulsação ritmada. Mais que isto, que seja eficiente quando se encontra só: de um único

instrumentista se obtém um estímulo suficiente. Mesmo amplificado, terá de manter a dife-

renciação entre os dois níveis de intensidade: sem acento e com acento. Isto já explica mui-

tas das escolhas técnicas acima mencionadas. Não faz sentido acrescer ao toque de fiddle

aquilo que não se ouve. Por este motivo, também se usa muito a ornamentação quando nos

registros mais agudos, das cordas lá e mi, em que concorre o efeito psicoacústico do masca-

ramento (identificação preferencial do som mais agudo dentre dois tocados simultanea-

mente e com mesma intensidade). A partir daqui, porém, falamos de escolhas estilísticas,

interpretativas, enfim, artísticas.

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Na Música Tradicional Irlandesa utilizam-se melodias singelas, geralmente com es-

trutura AABB ou, menos comum, AABBCC ou mais longa. Em geral, repete-se toda a se-

quência.

Trata-se de música modal. Os tunes são facilmente caracterizadas nos modos tra-

dicionais jônio (maior), eólio (menor), dórico, mixolídio. A modulação é raramente utiliza-

da dentro de uma mesma peça; é explorada com moderação por Liz Carroll. Mas ocorre,

sim, a modulação intencional entre as diferentes peças justapostas num mesmo set4: toca-

se em sequencia, duas, três ou (raramente) mais peças de dança, comumente no mesmo

ritmo, mas podendo se alternar de jig para reel ou de outra forma. Salta-se normalmente de

um tom para sua subdominante. Sendo assim, o que seria a finalização de cada tune serve

como tensão para o surgimento do próximo.

Os graus de intensidade como p, mf, f, ff e as variações de dinâmica conhecidas da

música erudita - crescendi, diminuendi - não são utilizados. Porém, pontualmente, nas mãos

de um Martin Hayes, se mostram um recurso muito expressivo. Usando slow airs como in-

troito, este fiddler se vale da progressiva variação de andamentos, uma espécie de aqueci-

mento gradual em direção à dança.

São recursos interpretativos nas danças rápidas (reels, jigs e polkas):

arcadas muito rápidas, repetindo aqui a menção aos tripplets, acrescentados como

ornamentos nos tempos fracos, como imitando aqueles feitos ao acordeão ou

concertina, e não restritos à música irlandesa (curiosamente, são frequentes na

música gaúcha);

arcadas curtas e portanto desprovidas de variações de pressão e velocidade;

vibrato em notas selecionadas como opção, mas ausência de vibrato contínuo;

acento rítmico nos tempo fortes ou, sistematicamente, nos contratempos (caso

típico da polka);

ligadura terminando na cabeça do compasso ou em outra nota acentuada;

andamentos muito rápidos5;

mudanças de corda sistemáticas, que fazem com que mesmo sem uso de notas

duplas transpareçam duas ou mais vozes, como é usual nas sonatas e partitas de

Bach;

rubato (swing), porém sem prejuízo da pulsão dançante; um estudo de Rosinach e

Caroline (2006) constata tal recurso no toque de um músico profissional.

Nas peças mais lentas, como slow airs e hornpipes, é mais evidente a busca por uma

pureza de sons, e certa ingenuidade, por vezes prevenindo o uso do vibrato. Aliás, à mão

esquerda, mesmo muito hábil, faltam comumente os recursos como do vibrato ou do tocar

em outras posições que a primeira.

4 Set é o conjunto de duas, três ou mais danças intercaladas que num recital ou session formam um bloco, sem in-terrupção. 5 Berthoud (2002), novamente, menciona que os fiddlers seguram o instrumento na frente do corpo, tocam ba-tendo os pés, e ainda “mantêm uma face quase sem expressão enquanto tocam”.

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Em ambos os grupos (danças lentas e rápidas), usa-se abundante ornamentação.

Esta inclui habitualmente:

roll (grupeto), do qual já comentamos o caso das cordas soltas;

cut (apoggiatura superior, por vezes em intervalo de quarta e hammer on

(apoggiatura inferior);

triplets também chamados trebles, já mencionados, mais comum no estilo Donegal

(descrito abaixo) e usado por Tommy peoples em reels, mas também em jigs;

mordentes invertidos (nota principal e a inferior tocadas rapidamente antes da

principal);

slide (glissando) até a nota de interesse, por ¼ a ½ tom6;

cran: é o ornamento feito em ligadura, com o dedilhado 0/2/1/0 na corda solta

(HAIGH, 2021) .

Aqui é elucidativa uma comparação com o que ocorre em outros contextos, com

outros instrumentos, nos quais as peculiaridades técnicas encaminham opções interpreta-

tivas. Um instrumento comum na Europa na época da proliferação das danças era o cravo,

que carece do mecanismo de repetição presente nos modernos pianos. Notas rápidas su-

cessivas não são possíveis, já que a haste vertical chamada saltador de cada nota do cravo

sobe, movida pela alavanca da tecla, para seu plectro tanger a corda, e baixa por gravidade,

ainda frenado pelo próprio plectro. Esse retorno do conjunto à posição inicial impõe um in-

tervalo mínimo que impede a repetição rápida; mas mordentes, grupetos e trilos são possí-

veis. Já no fiddle, é possível o triplet já mencionado, e também no acordeão, na concertina, e

também nos instrumentos de sopro como whistle e flauta, mediante o estalo da língua por

detrás dos dentes.

McCullough (1977) aborda a questão do estilo na música irlandesa, e considera

tanto a ornamentação, o uso de variações melódicas e rítmicas do mesmo tema, quanto as

diferenças de articulação e fraseado. Propõe a pergunta se é o fraseado que influencia a ar-

ticulação ou vice-versa.

O uso de ornamentos constitui uma escolha individual de quem se debruça sobre

um tune. Ainda, se pode flexionar o modo melódico da peça, criando acidentes musicais; fa-

zendo dos ornamentos notas principais; ligando ou destacando. A ideia de coletânea escrita

foi feita, em mais de uma ocasião, para evitar o esquecimento, dado um pessimismo cir-

cunstancial; hoje em dia, há diversos métodos impressos para se aprender fiddle. Em se

tratando de música tradicional, não há versão correta: uma consequência é o dinamismo, a

participação ativa de cada geração no processo, e alguns músicos, apostando na efemeri-

dade da música, desdenham o uso de partitura (BERTHOUD, 2002; HAYES apud COOPER,

2002; SMITH, 1997; REES, 1998, BURKE apud HAIGH, 2021). Pois, num contexto rural, em

6 Cooper (1995) menciona que, se o slide soa vulgar na música clássica, o vibrato soa vulgar na música tradicio-nal.

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que papel, caneta e superfície limpa para escrever não deviam ser recursos abundantes,

mais que anotar, se recorria à memória auditiva.

Um violinista, ou instrumentista de solo aprende algo semelhante quando se depa-

ra com a música barroca: ao repetir, é obrigação do intérprete variar, oferecer ao público

material novo. "Crie. Cause surpresas", afirmou um instrutor de fiddle, Ridley Irish Music

School, em Cincinnati (BONA BRIDGE, 2012).

A harmonia é um tema menos lembrado. Sua expressividade é obliterada pelo rit-

mo e pela melodia, que suetentam o caráter dançante. Seu papel na produção de atmosfe-

ras é pobre; vai atrelada, contudo, à produção de versões na melodia principal. Um dos au-

tores desse texto, encontrando-se em 2008, em Dublin, foi comprar um álbum de tunes, e

só os encontrou sem acompanhamento. Perguntando ao lojista, este reagiu surpreso:

"acompanhamento para quê?" Não explicou exatamente, mas deixou a entender que a

harmonia seria óbvia. Na verdade, há um outro motivo: é por não haver regras, senão o

propósito de soar bem. Assim também se trata um assunto relacionado à harmonia, que é a

batida de violão. Não há regra, mas hábitos mais arraigados. O acompanhamento feito ao

fiddle por violão introduz cores harmônicas; porém, parece mais preencher vazios do que

realçar o ritmo.

Embora se perceba a prática do improviso nas sessions, comuns nos pubs na Irlan-

da e nos locais de inspiração irlandesa pelo mundo, não é factível o improviso de arcadas

ou ornamentos sem intensa experimentação e prática prévias. Dado o uso de pouco com-

primento de arco, há margem para se corrigir uma ou outra arcada menos conveniente.

Não é algo que se pareça com a organização visual no naipe de cordas de uma orquestra, é

antes um compromisso com o fraseado e o ritmo. E não se trata de simples prosódia, algo

que torne clara uma melodia: há uma energia pulsante, um convite ao movimento, à dança.

Quem escuta Kevin Burke percebe uma espécie de guizo, o atrito residual regularmente

cadenciado produzido pelo arco nas mudanças de direção, e tampouco se trata de spiccato.

Numa situação rural e limitada, os camponeses dançavam, numa taverna ou ao ar

livre, ao som de um único instrumento: seja o fiddle, uma gaita de foles, um alaúde, uma

cornamusa ou outro instrumento de sopro. Este instrumento era responsável por tudo. Há,

na Europa, uma profusão de pinturas do séc. XVII (Adrian von Ostade, Adriaen Brouwer,

David Tenier, Mattheus van Helmont, Pieter Bruegel, o velho) que retratam esta realidade.

Em termos mais ideais e menos pragmáticos agora, mencionamos acima que ge-

ralmente falta o texto cantado que acompanha a música. Todo o material extra-musical ou

programático se resume no título do tune. Dificilmente uma peça vem desprovida de título,

ou apenas numerada. Os títulos das peças dançantes cobrem uma gama de assuntos co-

muns na música das diferentes etnias: pessoas, animais, objetos, lugares, partidas, festejos.

O tema da partida (da Irlanda para a Irlanda) é recorrente. Kevin Burke relata que, em sua

adolescência em que aprendia violino clássico, mas frequentava pubs de irlandeses em

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Londres, associou a música de fiddle à "contação de história", que também acontecia, além

da dança, nos eventos de confraternização.

Para Johansson (2015), a boa técnica adquirida por exercícios estilisticamente

neutros facilita ao estudante de violino poder se concentrar nas características musical-

interpretativas dos diferentes estilos. "Quando a técnica se torna 'natural', ela se move

além do controle consciente; ela se torna uma experiência inseparável do que constituem

as restrições idiomáticas do instrumento." Mudar de um estilo para outro requer "alternar

entre conjuntos de hábitos incorporados." Os conceitos musicais surgem de e são, em últi-

ma análise, inseparáveis da experiência acumulada de sensações associadas com tocar o

instrumento. O estilo é em muito decorrência da técnica incorporada.

Já Mark O'Connor, fiddler dos EUA que combina bluegrass, jazz e elementos do vio-

lino clássico, afirma ser difícil aprender "pura técnica". Vem junto um estilo. Isto não impe-

de, argumenta, que violinistas se tornem fiddlers ou o contrário, "somente que eles não po-

dem fazer isto simplesmente aplicando suas habilidades técnicas já adquiridas."

Para Swift (2006), hoje os intérpretes com habilidade técnica prodigiosa estão

ocupados colaborando além das fronteiras entre violino e fiddle. Mas, segundo o autor, o

repertório clássico do violino irá viver para sempre, assim como irá o vasto corpo de tunes

que são claramente para o fiddle.

Por fim, Haigh (2021) aborda duas práticas de exotismo no contexto do fiddle ir-

landês. Uma delas é a scordattura - uso de afinações diferentes do convencional G-D-A-E,

subir ou baixar todas as cordas em meio tom, ou afinar diferente mesmo, como AEAE e ex-

plorar possibilidades dos drones. Outra é a do violino de estanho, popular em Donegal no

início do séc. XX. Era barato, leve e fácil de fazer (poucas horas de trabalho de um latoeiro

viajante com prática) e reparar. Braço e espelho eram comumente de madeira. John Do-

herty era um famoso construtor e usuário.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há evidências de que a Música Tradicional Irlandesa, como manifestação cultural,

não chegou ao século XXI como herança dos celtas, nem dos habitantes da Irlanda na Idade

Média ou mesmo de algum período entre esta e o final do séc. XVII, época das primeiras co-

letâneas. Tampouco é, hoje, como transcreveram Edward Bunting, ou Frank O'Neill, ou co-

mo interpretaram Michael Coleman, os Chieftains ou o Riverdance. É em grande parte a

música europeia de dança que, ao menos na França, Reino Unido e Itália, caiu em desuso.

Substituída por modismos e aprimoramentos, foi sendo abandonada. Sobreviveu entre os

camponeses reprimidos por sua religião, vivendo num regime feudal, à margem da subsis-

tência, numa das ilhas mais remotas da Europa.

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É uma atividade musical e social transmitida oral e organicamente que, em 2021,

tem os elementos necessários para se fazer ouvir em 2021, com violinos e violão que têm

seu projeto de pelo menos 1900, bodhrán de 1940, uileann pipe e whistles de 1800, e acor-

deões e concertinas da metade do séc. XIX. A eles se adiciona tecnologia digital e um acesso

à informação como nunca antes se viu.

A música feita em cada época é aquela que compele alguém a tomar seu instru-

mento, senão papel pautado, e fazer, com base no que se conhece, nos instrumentos que se

tem, e na sugestão (affordance) do que é bom e, muitas vezes, normal fazer. Fato é, fazia-se

música, e a música fazia sentido. E segue. Se hoje vemos o movimento de resgatar fontes

históricas para dela extrair traços de interpretação, é porque faz sentido. No futuro pode

ser diferente.

Retomamos a definição apresentada no início de que herança é algo que transfor-

ma. Enfim redescoberta de seu refúgio temporal-geográfico, a Música Tradicional Irlandesa

é manifestação da atividade criativa humana, da cultura, que não estática, mas viva. É um

registro de humanidade.

6. AGRADECIMENTOS

A Eamonn O'Doherty, através de sua esposa Barbara. A Stephen, do National Mu-

seums NI. Ao Irish Traditional Music Archive.

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1

APÊNDICE

QUADRO 01

David Teniers, o mais jovem (1610–1690) Fiddler in a tavern. John and Mable Ringling Mu-seum of Art Blue pencil.svg wikida-ta:Q612530 Source/Photographerhttp://emuseum.ringling.org/emuseum/ob

Adriaen Brouwer (1606-1638), In een taverne (de vioolspeler). Acervo do museu Hermitage. Domínio público.

Adrian van Ostaden (1610-1685), fiddler na taverna. Royal Collection (Haarlem), RCIM 404584. Domí-nio público.

Sup., dir. A fiddler plays in a tavern with a family drinking at one table and others in the back-ground. Gravura por Ryland a partir de R. Brakenburg (recorte) em https://wellcomeimages.org/indexplus/obf_images/03/34/7482cb27a74b8bd90d75fee5837b.jpg

The blind fiddler. Pintura por David Wilkie (National Gallery or the Tate, Londres). Gravura por John Burnet. Courtesy of the Irish Traditional Music Archive.

Meio sup., meio esq. Fiddle na taverna. No Metropolitan Museum, Nova Ior-que. Met 832257. Domínio público.

Anônimo (1858). The Gipsy Fiddler. The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque N˚. 60.620.57. Domínio público.

Lucas van Leyden (1494–1533). Os músi-cos. Gravura. The Met-ropolitan Museum of Art. n˚59.534.1. Domínio público.

A Rake's Progress. Gravura por William Hogarth (1697-1764). Metropolitan Museum , Nova Ior-que, DP 825211. Domínio público.

Adriaen van Ostade (1610–1685) Casal cantando e violino. The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. N˚51.501.484. Do‐mínio público.

Violinista. Gravura de Dirk Koedijck (1908) baseado em Hendrick ter Brugghen (1730). Rijksmuseum, Ams-terdã N˚RP-P-1908-319. Domínio público.

Pieter Moninckx (1616 - 1686). Interior com vio-linista, mulher dormin-do e cachorro dançando. Desenho. Rijksmuseum, Amsterdã. N˚ RP-T-1911-85. Domínio pú-blico.

Músicos de rua. Gra-vura de anônimo (1830-1887), basea-do em Cornelis Du-sart Rijksmuseum, Amsterdã. N˚ RP-P-1887-A-12260. Do-mínio público.

Jan Havicksz, An-tuérpia (1636 - 1679). Violinista cantando. Rijksmu-seum, Amsterdã. N.˚ RP-T-1879-A-9. Do-mínio público.

Jacob Gole (1670 – 1724). Jovem violinis-ta sentado e outros dois, e um cachimbo. Gravura. Rijksmu-seum, Amsterdã. RP-P-2001-40. Domínio público.

Willem Pietersz. Buytewech. Violinista sentado (1620-1624). Rijksmuseum, Amsterdã, n˚: RP-T-1884-A-296. Domínio público

Músico e um homem que oferece fumo. Gravura de anônimo (1905) baseada em Cornelis Dusart, pintura de 1685. Rijksmuseum, Ams-terdã. N˚ RP-P-1906-3084. Domínio pú-blico.

William Sidney Mount: The Power of Music. Cleveland Museum of Art 1991.110. Domínio público.

Anônimo (1657-1745) a partir de Adrian von Ostaden. Vioolspeler en een jonge lierdraaier. Gravura. n˚ RP-P-1909-4129, Ri-jksmuseum (Amster-dã). Domínio público.

Anonymous (Huy, Bélgi-ca). Folha do Livro das Horas. Walters Art Mu-seum, Baltimore, Núme-ro W.37.21R. Domínio público.

Allan Cunningham, gravura por Henry Chawner Shenton. 1833.The Merry Fiddler. British Mu-seum. Objeto 3224477. Domínio público.

J. Heudelot (fim do séc. XVIII). Gravura baseada em Adrian von Oestede (1610-1685). Domínio pú-blico. em https://wellcomecollec-tion.org/works/x684ah62

Pavel Petrovich Svinyin (1787–1839) Festança num restau-rante em Wayside (cerca de 1818). Publi-cado no Voyage Pitto-resque Aux Etats-Unis de l'Amérique. Domí-nio público.

David Tenier, o mais jovem. Casamento de camponeses. Litografia de 1836. British Mu-seum. N˚1852,1009.455. Domínio público.

Quadro 1 - fontes da Figura 3.


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